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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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domingo, 3 de janeiro de 2010

Ainda sobre as corporações

Um leitor, Leopoldo Mesquita, escreveu uma crítica dura mas muito pertinente ao meu post anterior. Transcrevo aqui o seu comentário e a minha resposta:

Vou ser propositadamente duro para com o texto do José Luís Sarmento, uma vez que a dureza do combate dos professores na situação presente assim o exige. Não conheço o JLS e de forma alguma envolvo a sua pessoa nas considerações que a seguir farei.
As teses gerais que o texto em apreço veicula são as que foram elaboradas pelos teóricos burgueses e liberais dos séculos XVIII/XIX e correspondem à necessidade de afirmação de uma nova ordem social que então emergia, contra os poderes então vigentes, protectores do que por vezes se designa por "antigo regime". Quando, já fora desse contexto, essas teses são utilizadas como instrumento de luta política, o "populismo" ocupa normalmente o lugar da acção esclarecida de quem o faz. Um exemplo extremo: a ideologia dos regimes fascistas e nacional-socialistas, que se afirmou contra a mesma "plutocracia" que o JLS toma como alvo no seu texto, mas que era na realidade um instrumento das classes burguesas dominantes nos países em que surgiu, e cujo ideário se baseava também na oposição entre "corporações boas" e "corporações más", as primeiras tendo como valores supremos o "trabalho", o "esforço" e o "mérito", permanecendo as segundas, ainda segundo esse ideário, sempre acobertadas pela protecção ilegítima e imoral dos poderes instituídos.
Os professores portugueses estão actualmente envolvidos numa tremenda luta política. O JLS propõe no seu texto uma solução (ou pelo menos o seu princípio) para essa luta política: a criação de uma Ordem dos Professores. O problema aqui não está na proposta em si, uma vez que a dita Ordem tanto pode ser um instrumento de defesa da profissão docente e da educação pública, como pode ser um instrumento do Governo contra a maioria da classe docente e pela imposição das suas políticas - tudo depende das ideias, da filosofia e dos programas de acção que presidirem ao seu funcionamento. O verdadeiro problema que existe com esta proposta, na forma como ela surge pela pena de JLS, é que ela contribui para encerrar os professores dentro do seu mundo específico e faz crer que é no interior desse mundo específico que se devem procurar as soluções para a presente crise educativa. Se a proposta Ordem dos Professores for criada com estes princípios, ela mimetizará os actuais sindicatos de professores, cuja acção enferma precisamente desse erro capital, que é o de querer apartar os professores das demais classes trabalhadoras em Portugal, numa altura em que os problemas da nossa classe são já, em larga medida, comuns aos que enfrentam essas mesmas classes trabalhadoras.
Os professores enfrentam actualmente um processo que visa impor na educação pública uma transformação de tipo capitalista. Todas as questões de natureza deontológica, pedagógica e profissional com que nos enfrentamos têm que ser dirimidas na resistência a este processo e na construção de uma alternativa ao mesmo. As forças e os interesses que estão por trás daquela transformação, avocam para si a capacidade e a legitimidade para definir o que devem ser aquelas deontologia, pedagogia e profissionalidade - as "boas práticas", ou, como dizem os seus mentores, "what works". São essas forças que estão por trás e impulsionam as políticas educativas do Governo Sócrates. Limitem-se os horizontes do combate e das pretensões actuais dos professores portugueses à criação de uma ordem profissional, encarregue de definir os princípios deontológicos, pedagógicos e profissionais supostamente ideais para a classe dos professores - como resulta do último parágrafo do texto de JLS-, e estará prestado, a meu ver, o melhor serviço possível às pretensões contidas naquelas políticas.

Leopoldo Mesquita

Caro Leopoldo Mesquita:

Começo por lhe agradecer a sua crítica, que levanta várias questões que para mim são muito interessantes.

Comecemos pela questão do "antigo regime". Se bem o compreendi, você entende que, estando este definitivamente ultrapassado, já não se justificam as teses elaboradas contra os poderes que o defendiam. Do que eu discordo aqui é o seu pressuposto: a ordem feudal tem, a meu ver, raízes profundas naquilo a que Jung chamaria o "inconsciente colectivo". É um regime por assim dizer "natural" - em todo o caso mais "natural" que a construção altamente abstracta que é o Estado Moderno - e pode portanto ressurgir em qualquer período histórico. O feudalismo está adormecido, mas não está morto.

É isto que está a acontecer desde há trinta anos no mundo ocidental. Thatcher e Reagan prometeram-nos que do refluxo do Estado resultaria a emergência do Indivíduo em todo o esplendor da sua liberdade; o que está a emergir em vez disso (como era de esperar) é a prepotência dos novos Barões.

Se o refluxo do Estado tivesse sido acompanhado duma afirmação poderosa da Sociedade Civil - incluindo necessariamente as "corporações" - talvez o Thatcherismo, o Reaganismo e a Terceira Via de Blair, Clinton e Sócrates não se tivessem revelado a fraude que está hoje à vista de quem quiser ver. Mas a Sociedade Civil, em vez de se fortalecer, enfraqueceu.

Olhemos para os "novos bilionários" americanos - Bill Gates, Warren Buffett - para o seu estilo de vida "popular" e "modesto", para o modo ostensivo como bebem Coca-Cola em vez de vinho e comem hamburguers em vez de caviar; olhemos para a história que contam e recontam das suas origens humildes (por vezes reais, por vezes nem tanto) - e veremos, lá onde o americano comum vê qualquer coisa de novo e maravilhoso, uma cena que para nós, europeus, é velha de séculos: o grande senhor que se sente perfeitamente à-vontade na choupana do camponês e se alia com ele contra o artesão, o letrado, o habitante das cidades; contra o "vilão", para resumir. Hoje o vilão somos nós.

A sociedade americana não tem anti-corpos contra uma recaída no feudalismo. As sociedades europeias têm estes anti-corpos; só não sabemos se são suficientemente fortes. Mais importante e encorajador do que a sua existência é o facto de na Europa, ao contrário do que acontece na América, os novos ricos não terem (ainda) poder suficiente para incluir o dinheiro velho no rol dos seus inimigos, conjuntamente com os sindicatos, os intelectuais, os trabalhadores e as classes profissionais.

Ou seja: na América, os novos bilionários podem participar alegremente, e participam, na denúncia dos plutocratas - basta-lhes arranjar maneira, simbólica que seja, de não se incluírem neste número. É a isto que Thomas Frank chama "populismo de mercado".

Há outros populismos, é claro. Dou-lhe razão nisto. E também lhe dou razão quando dá a luta que o nazismo travou - ou disse que travou - contra a plutocracia como um caso de populismo. Mas isto não legitima a plutocracia: os inimigos dos nossos inimigos não são necessariamente nossos amigos.

Do ideário do Nazismo fazia parte, com efeito, uma distinção entre "corporações boas" e "corporações más", mas o Leopoldo Mesquita erra quando escreve que eu concordo com essa distinção (mas pode ser que não queira dizer isto; o seu texto, nesta parte, não está bem claro). Quero eu então deixar claro que me oponho a esta distinção; e se a refiro é para a criticar, como parte que também é do ideário neoliberal, sobretudo na sua variante conhecida por "Terceira Via".


Nota: depois de reler o meu texto e o do Leopoldo Mesquita, verifico que afinal o que não está bem claro é o meu. É possível depreender dele, com efeito, que considero "boas" algumas corporações, como os sindicatos e as ordens profissionais, e "más" outras, como a dos políticos ou a dos empresários.
Não considero "boa" ou "má" nenhuma corporação. As corporações fazem parte duma sociedade civil saudável e sem elas o Estado é uma estrutura formal e vazia. O que eu critico é o facto de algumas corporações - as que o poder político e económico considera "boas" - não se assumirem pelo nome; e critico a ideologia neoliberal por considerar "más" todas as corporações depois de excluir deste número as que lhe interessa favorecer.

3 comentários:

optimista disse...

Caro José Luiz Sarmento,

Agradeço a elevação da sua resposta ao meu comentário sobre o seu texto anterior. O José Luiz levanta nesta resposta diversas questões do âmbito da ciência política e do comportamento das classes dirigentes nos países ocidentais, as quais são muito pertinentes e interessantes em termos gerais. Não me considero habilitado para discorrer acerca delas com a facilidade com que o José Luiz o faz aqui, mas permito-me chamar-lhe a atenção para o seguinte:
O que se passa actualmente, em meu entender, na área da educação pública é um processo, que podemos qualificar de clássico (mesmo que com fortes especificidades), de destruição de relações não-capitalistas e de construção de relações capitalistas de produção. Este processo tem uma grande importância teórica e prática, não apenas pelo que acarreta na actividade educativa em si, mas também pelo que significa no próprio funcionamento do capitalismo e das sociedades actuais, em geral. Do que tenho estudado sobre este assunto, tendo a concluir que a maior parte das teorias que vislumbram nas mudanças actuais, ou "regressos ao passado", como o José Luiz se inclina a apresentar como possíveis, ou avanços para um futuro "pós-capitalista" (ou "pós-moderno", como também se diz), a maior parte dessas teorias, dizia, acabam por cumprir uma função perversa de obscurecimento das reais mudanças que ocorrem diante dos nossos olhos, as quais traduzem a meu ver, não um retrocesso a formas de produção e organização social pré-capitalistas ou próprias dos primórdios do capitalismo, nem tão pouco um suposto progresso "para além do capitalismo", mas sim a extensão de uma lógica capitalista a sectores dos quais a mesma se encontrava até agora ausente, ou nos quais tinha uma fraca expressão. Aliás, o próprio conceito de "neoliberalismo", que hoje é muito utilizado, suscita-me reservas pelas mesmas razões.
No texto que motivou o meu comentário anterior e no que agora origina este comentário, o José Luiz tece considerações sobre o "Estado", o "mercado", a "sociedade civil" e as "corporações", mas fá-lo em termos teóricos gerais, com base nos quais não é possível, na minha opinião, analisar as actuais transformações no sector educativo.
O fenómeno crucial, que é a presente transição do que se pode designar de "Estado educador" para um "Estado capitalizador da actividade educativa", por exemplo, tem de ser analisado pelo que é e pelo que significa em si próprio. E o mesmo se deve dizer sobre a transformação das formas de mercado não-capitalistas (há muito existentes e até dominantes nos sistemas educativos) em formas de mercado capitalistas no interior desses sistemas educativos, com destaque para o "mercado de trabalho" dos professores. Por exemplo, o que se pode chamar de "corporação" dos professores, corresponde na realidade a uma espécie de "mercado laboral protegido", o qual sofre no presente um violento processo de destruição por parte das classes dominantes, cujo poder estatal até agora o tutelava, no sentido da sua substituição por clássicas relações de assalariamento capitalista. Se os professores se quiserem opor a este processo, que é a todos os títulos dramático e indesejável, estão "condenados" a fazê-lo em aliança com os demais sectores de trabalhadores que o sofreram há muito ou que actualmente o sofrem também (como é o caso, por exemplo, dos engenheiros, entre outros). Em vez de olhar para trás em busca de formas de reforçar a "corporação dos professores", melhor será, em meu entender, olhar para a frente e pugnar por uma alternativa de fundo ao actual processo de "capitalização" da actividade educativa. Todas as questões de natureza profissional ou do âmbito da relação educativa ou da pedagogia, devem, a meu ver e como antes defendi, ser dirimidas no quadro deste confronto fundamental.
Agradeço a sua atenção e envio-lhe cordiais cumprimentos,

Leopoldo Mesquita

Eduardo Miguel Pereira disse...

Aos dois os meus parabéns pela elevação do debate, e o meu obrigado pea forma como expuseram as vossas ideias que ajudam a entender um pouco mais toda a envolvência numa matéria que me parece estar, estranha e perigosamente, abafada.

optimista disse...

Eduardo Miguel Pereira,

Agradeço as suas palavras, pela parte que me toca.

Leopoldo Mesquita